quarta-feira, 10 de março de 2010

CRÔNICA

NO CEARÁ É ASSIM

Fortaleza está molhada. Molhada de suor. Um lençol de calor se abate sobre minha linda e amada Fortaleza, a loira desposada pelo sol do meu Ceará agreste. O sol se esconde. Nuvens negras, pesadas escurecem o céu, mas não se rasgam, não desabam em águas sobre nós. O mormaço é constante, calor de frigideira em fogo de achas de mororó. Todo mundo bebendo água como jumentos de lote, bando de avoantes em beira de rio. Lagartixas, calangos correndo em dois pés com medo de queimar o bucho. Galinhas se aninham perto de geladeiras temendo parir ovo cozido. O calor dança na nossa frente deixando-nos tontos, lerdos. Bebe rios inteiros o sol, a sede é grande, nem ele aguenta. Muitos esperam por um milagre: chover no dia 19 de março, dia de São José. Caso não será sede, sede e caganeira...
MISTURANDO A MASSA

Zéraimundo era um pedreiro das antigas. Boca sempre aberta devido aos dentes expostos, avantajados. Quando falava (uma chuva de perdigotos impregnados de nicotina abafada), empesteava o ambiente, mas, era um bom homem e avaro também. Quando avaliou que o filho de 15 anos já aguentava com o peso de um camburão de massa dosada, levou-o pra ser servente de pedreiro. “Filho de peixe, peixinho é”, filosofava.
Na construção em que trabalhava, todos os dias, faziam um panelaço de comida. Todos traziam de casa a sua cota de feijão e claro, o tempero: tripa de boi, de porco, um pedaço de carne do sul, de toucinho de porco e temperavam o feijão de carregação. Ficava gostoso. Zéraimundo trazia também, só que o seu tempero era colocado no panelão, amarrado pela cintura com palha de carnaúba. O caldeirão fervendo e os “trambei” do Zéraimundo, como diziam seus colegas de trabalho, subindo e descendo na frevura da panela.
Certo dia, Zéraimundo levou uma lata de leite cheinha de paçoca. Na hora do almoço chamou o filho e disse:
- Dedé, chegue a cuia, pegue a paçoca. Quando Zéraimundo abriu a lata o cheirinho gostoso tomou conta do alojamento. Os peões acenderam os olhos e foram se chegando. Zéraimundo pra evitar o “me dá um pouquinho aí” cochicha pro filho, já cuspindo dentro da lata de farofa:
- Anda, cospe dentro da lata, cospe.
O filho, obediente, cuspiu.
Zéraimundo tampa a lata, suspende acima da cabeça como quem está chamando pedra de bingo, sacolejando-a firmemente. A peãozada se afasta com nojo. Zeraimundo destampa o utensílio de flandre trocando um riso de cumplicidade com o filho.
HAIKAI

céu em aquarela
manchas roliças maciças
cinzas pretas dágua

terça-feira, 9 de março de 2010

CRÔNICA

QUEM É DO MAR NÃO ENJOA

No princípio Deus criou os céus e a terra. Gênesis, capítulo 1, versículo 1.
Em criando a terra, seguindo a lógica, Deus criou os países e daí surgiu o nosso, o nosso idolatrado Brasil. E na sua feitura Deus caprichou: um belo oceano, grandes e imensos rios, imensas florestas, belíssimas e fartas fauna e flora... Os anjos ao redor do Supremo cochichavam pasmos. Gabriel, o Arcanjo, não se conteve:
- Senhor, por que tantas benesses para este país?
Deus alisando suas longas barbas brancas, num sorriso de criança prestes a cometer uma travessura respondeu:
- Gabriel se soubesse as criaturas com que irei povoar este país...
Pois é, e cá estamos nós (criaturas de Deus) em meio a esta bonança natural, divina, e, pra variar, servindo a deus e ao diabo, vandalizando... Por mais estranho que pareça tudo contribui para que tenhamos este tipo de atitude. Vejamos 2010, por exemplo. Só tem seis meses de vida útil... É isso mesmo, seis meses. Copa do Mundo, campanha eleitoral, eleições, Natal, tudo cheira a folia, diversão, circo. Pobreza, miséria, desemprego, corrupção (mas menino, ninguém é de ferro), vira samba-enredo, marchinhas de carnaval, alimentam shows de humor nas barracas de praia deste país verde-amarelado metade banhado por águas salgadas.
O paraíso é aqui, claro (com seus inferninhos periféricos), está na planta original elaborada pelo arquiteto do universo. Brasiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiil...

LENDO A NATUREZA

Encostado no vão da porta da cozinha da tapera de taipa já caindo aos pedaços, mão em jeito de ciscador correndo por entre os cabelos da fronte à nuca num vai-vem afobado. O crepuscular que se abate sobre seu roçado está avermelhado de tanajuras. Olhar parado. Raivoso, sonhador, feliz é o desenho surreal se estampando em seu semblante de sertanejo, cabra da peste, do meu agreste Ceará. Rumina.
“Cuma darei de conta de tanto furmiguêro... Ah, qui coisa linda será vê as nêga bunduda im sêos vistido colorido de chita a dibuiá mí, fêjão... Tumá bãin pelado sortano cangapé nas vazante do açude impapado dágua...”

SAPO-BOI

Oh Yara mãe das águas
De cabelos ondulados
Alagada de bondades
Quero ser sapo cantante
Para estar todas as tardes
Com olhos aboticados
Nas mulheres rindo à toa
Nuas, correndo e pulando
Na beirada da lagoa.